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quarta-feira, 23 de junho de 2010

dizer o indizível

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a palavra não alcança
a minha palavra não
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luto na Literatura Universal e na Língua Portuguesa...


José Saramago: 16/11/1922, Azinhaga (Portugal) - 18/06/2010, Lanzarote (Espanha)
Deixa um mundo ficou menos solidário, menos lúcido... e mais triste...
 
Difícil explicar a perda de uma referência com a qual se convive, por meio do universo imaginário construído pela linguagem, numa intimidade a um só tempo anônima e pessoal, distante e profunda... 
 
... Nosso primeiro encontro se deu no século XVIII, durante a construção de um convento em Mafra, ordenada por D. Joaõ V, porque a rainha não conseguia gerar-lhe um herdeiro. O compositor amigo e o padre voador estavam entre os convidados, à luz da fogueira. O primeiro extraía as famosas melodias enquanto o segundo sonhava a passarola, feita à mão esquerda do fiel Baltasar e erguida no ar sob as vontades dos homens colhidas por Blimunda. 'E se Deus é maneta' isso explica, quem sabe, as coisas todas deste mundo...
Encantei-me...
 
Já da segunda vez, o encontro definitivo: ele me apresentou outro José, um judeu marceneiro cheio de boa vontade e de culpa, e seu filho: vi-o ser concebido à luz da fresta de uma porta, vi-o também nascer, em uma cova em Belém. e se tornar um jovem semelhante ao pai, cindido entre as regras de seu povo e de seu tempo e sua fome de justiça. Com este jovem, a lição: 'só o amor nos salva da morte'. Visitei essa família diversas vezes e, apesar dos dois milênios de distância, ouso crer que eles se integraram à minha trajetória. 
 
Quis conhecer outros Josés, e José pensador conduziu-me por um labirinto. Ali, um funcionário da conservatória reinventava vidas a partir de Josés, Marias e outros nomes tantos, todos.
 
Já mais familiarizada, ele - que privilégio! - me apresentou Ricardo Reis, em Lisboa, quando este lá retornou para o enterro do maior poeta do século XX. Que viagem maravilhosa... pelo país, pela linguagem, pelos poetas vários que o maior soube ser.
 
Depois assistimos a uma pandemia juntos e, confesso, tive medo de não encontrar em mim dignidade suficiente para atravessar a brancura das páginas e da tela - ainda tenho, o medo...

Fomos juntos ao teatro, onde visitamos uma ainda desconhecida ilha... em Lanzarote, xeretei seus cadernos, misturamos nossas bagagens... nos tornamos um do outro quase que objetos...

Embarcamos em outra maravilhosa viagem, numa gigantesca jangada, tendo um cachorro como guia, e de novo assisti ao milagre do amor conferindo sentido à existência.
 
Separamo-nos por um tempo, crentes de que nossa relação já estava completa... mas... senti falta de sua companhia.

Daí, ele me chamou para acompanhá-lo em outra viagem; e juntamente com Subhro, escoltamos o elefante Salomão de Lisboa a Viena.
 
Resisti bastante quando ele me quis levar a outra caverna... resisti muito, na verdade. Acho que eu temia enxergar lá dentro o que não vejo sob a claridade do sol. Mas reaprendi que o simples, o artesanal pode, ao menos em imaginação, vencer o poder econômico e, de novo, deixei a caverna contente por finalmente ter aceitado o convite.
 
Então ele me mostrou mais de sua intimidade: abriu para mim as páginas de um manual, e para minha grata surpresa reconheci ele mesmo ali retratado... quase sem segredos, senti as cores, as texturas e os traçados de que o artista se compõe e se (re)cria...
... a essa altura, creio, tentou explicar-me mais uma vez a diferença entre a estátua e a pedra, quando eu já sabia que ele me traria sempre a escultura viva completa... não discutimos por isso, afinal temos ambos nossos caprichos...

A última viagem que fizemos juntos foi a mais inusitada, ou a mais maluca mesmo... ele me levou ao monte onde Abraão ia abater Isaac - por pouco salvo pelo terceiro viajante, um filho de Adão, de quem Lilith se enamorou; vimos a destruição de Sodoma, os incontáveis sofrimentos por que passou Jó, e findamos nossa viagem à porta de uma arca, sobreviventes últimos, os três, de uma espécie que falhou.

Antes que a tristeza irremediavelmente aportasse, dei-me conta, num ensaio de lucidez, que ainda tenho muitas viagens a empreender com ele... combinamos de nos reencontrar em 1993... vamos, marotamente, fazer um cerco a Lisboa, brincar com nossas pequenas memórias e com os apontamentos deste mundo e de outro... nos indagaremos se o santo de Assis teve uma segunda vida, visitaremos outra terra de pecado, onde reside a maior flor do mundo... uma noite, havemos de perguntar o que fazer com algum livro, exploraremos os cinco sentidos, colocarei em desordem seus cadernos... leremos, voz alta, todos os poemas possíveis e, assim, in nomine dei, nos levantaremos do chão e teremos duplicado o homem!
Quando a morte, intermitente, nos apanhar de novo, teremos, juntos, votado em branco à última hora, pastoreado ovelhas, conhecido Simão à praia, a caminho de Magdala, e chorado pelos inocentes no túmulo de Raquel... veremos de novo a enorme pedra despencar sobre os anônimos trabalhadores, navegaremos movendo Portugal e Espanha em direção ao Brasil, cegaremos muitas vezes, e outras tantas, abriremos os olhos, percorreremos os mesmos/outros labirintos, criaremos estátuas de barro para lembrar de que somos feitos de terra e, enfim, recolheremos as últimas vontades dos homens...

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